sábado, 10 de outubro de 2015

REGIÃO: IDENTIDADE E POLÍTICA











A chamada Serra Gaúcha recebeu vários nomes, tendo sido dividida e classificada de várias formas no decorrer do tempo. Nos primeiros anos de seu povoamento, que teve início de forma sistemática em 1875, foi conhecida como Colônia Italiana. Tal nome foi consagrado no álbum do cinqüentenário da imigração, publicado em 1925, com o apoio do governo de Mussolini. Da Colônia Italiana faziam parte as colônias imperais de Conde D’Eu, Dona Isabel, Caxias, Alfredo Chaves e Antônio Prado. As três primeiras, criadas em 1875; a quarta, em 1885 e a quinta, em 1886. Muito tempo depois de deixarem de ser colônias, e após se terem tornado municípios ou distritos de outros municípios, entre 1884 e 1898, continuaram a ser conhecidas como Colônias Italianas.
Com a criação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1945, a antiga região recebeu novas denominações. Na classificação fisiográfica realizada naquele ano, foi chamada de Zona da Colônia Alta. Em 1956, através de nova divisão baseada nas condições geomorfológicas, recebe o nome de Encosta Superior do Nordeste. Em 1969, aconteceu um novo ordenamento e a região passou a ser chamada de Antiga Região Colonial Italiana, levando em conta os fatores étnicos. Mais tarde, os critérios adotados foram os econômicos, passando a ser chamada de Microrregião Vinicultura de Caxias do Sul.
Apesar da mudança de classificações, a região continuou a mesma sob o ponto de vista geográfico, mas sofreu mudanças em sua economia e na administração, com a criação de novos municípios e a conseqüente fragmentação territorial.  De acordo com o Censo de 2000, a região possui aproximadamente um milhão de habitantes, sendo composta por cerca de 53 municípios derivados das cinco antigas colônias,  polarizada hoje por Caxias do Sul.
Durante seu povoamento, no período compreendido entre 1875 e 1914, entraram na região cerca de 100 mil imigrantes provenientes do Norte da Itália: vênetos e lombardos, do Império Austro-Húngaro, trentinos (ou tiroleses), e ainda alemães, poloneses, suecos, russos, suíços, franceses e até norte-americanos. Foram  vendidos cerca de 10 mil lotes, que ocupavam  cerca de 400 mil hectares da área das cinco colônias.
 Hoje sua população não é composta apenas de descendentes de imigrantes italianos. Moradores vindos de várias regiões dão nova vida à região. São descendentes de lusos, dos primitivos habitantes da região, de açorianos, de africanos, de asiáticos e de  muitos latinos americanos provenientes das províncias do Prata ou dos países andinos.

SOBRE A IDENTIDADE

A identidade de um determinado grupo é medida pela sua diferença em relação a outros grupos sociais ou étnicos. Antes da Segunda Guerra, era demarcada pela raça; como resultado desta hecatombe, passou a ser definida pela etnia, nova forma de marcar a diferença. Vários são os critérios para definir a identidade e um dos mais importantes deles é o da cultura, representada pelos saberes e fazeres regionais e seus valores, crenças, hábitos e costumes.
É possível traçar a identidade regional, a partir de seus elementos culturais, que a tornam uma região típica e única. Uma das características culturais desta região é o tipo humano. Originário dos imigrantes europeus, passou a ser chamado de colono, que significa morador da antiga região colonial.
Quem é o colono? O colono hoje é o morador da zona rural, ocupado no setor da vitivinicultura, ligado à produção da uva e a do vinho. Tal designação, que outrora constituía um estigma, hoje tornou-se  motivo de orgulho e de satisfação em tempos de abastança turística. Hoje o colono é um produto regional como o vinho, como as festas de colônia, como a produção colonial.
Mas nem sempre o colono foi este produto. Houve tempo no qual os colonos eram apresentados na historiografia tradicional como trabalhadores, pacíficos, bons e honestos. Possuidores das qualidades previstas no credo positivista: ordeiros e progressistas. A historiografia positivista não levava em consideração o seu modo de ser e de agir. A ação dos colonos foi definida pela sua condição de estrangeiros numa terra estranha e de língua estranha. Vários incidentes políticos revelam a outra face do colono. Um destes incidentes, narrado por Ângelo Ricardo Costamilam, mostra as perseguições políticas sofridas por seu pai - membro de uma das Ligas Católicas, criadas pelo controvertido padre Pedro Nosadini - promovidas pelo governo positivista  do Rio Grande do Sul. Tais perseguições teriam levado o comerciante de Loreto à morte.
Os jornais da antiga regional colonial italiana dos fins início do século XIX e início do XX são pródigos em noticiar as lutas e os conflitos ocorridos entre os seguidores da Igreja e os da Maçonaria nos municípios da antiga região colonial italiana. Manifestos conflitos e tocaias ocorrem em todos os rincões, de Bento Gonçalves a São Marcos. Nos pequenos municípios onde existiam maçons e católicos o radicalismo imperava, repetindo as velhas lutas políticas da península itálica com a chamada Unificação Italiana, na qual Garibaldi sintetiza o herói maçom e, o Papa, o mártir  católico.
Os colonos europeus, em sua maioria italianos que povoaram a antiga colônia Caxias, não apreciavam a política. De Boni, em clássico trabalho sobre a imigração, afirma o negativismo dos colonos, que preferiam se manifestar contra determinadas medidas e atitudes do que apresentar propostas. A negação de sua participação política é explicável, pois, para os colonos estrangeiros a política nacional constituía um risco. Muitos são os exemplos de casos que resultaram na expulsão do Brasil, ou mesmo na morte de imigrantes mais afeitos a brigas e movimentos políticos.
Por outro lado, deve ser considerado o fato de que a maioria dos imigrantes era de camponeses que viviam na Europa como meeiros ou proprietários de pequenas porções de terra. O camponês, pela própria natureza de seu trabalho, é conservador, pois está submetido aos caprichos do tempo. Secas, enchentes, e geadas que afetam a produção os obrigam a esperar, já que não podem alterar o clima. Tal forma de se relacionar com a natureza levou Hegel a concluir a cega confiança do camponês em Deus, considerado responsável pelo crescimento das plantas cujas sementes ele lançava ao solo. Esta forma passiva personificar o trabalho da natureza, da germinação dos vegetais às doenças, atribuindo a Deus este papel, não ocorre com o homem ligado à produção industrial. Este acredita na astúcia de sua própria razão, isto é, na possibilidade que tem de dirigir não só a produção como o  seu próprio destino.
Entre o colono e o morador da cidade há muita diferença. O colono é crédulo, ingênuo, e acredita nos mitos fundadores de sua cultura, na religião, nos valores e nos costumes. Encara a vida e os outros com desconfiança. Já, o citadino tem outras manhas e outro modo de agir. Apesar de ser como o colono originário do campesinato europeu, sabe   que é  dele que dependem tanto a sua produção como a sorte  de sua empresa. Ele deve prever como será o produto e em qual mercado pode ser vendido. Deve pensar em fazer contatos com o poder público - ainda que dele desconfie tanto como o colono. Não pode esperar por Deus para que sua produção seja vendida. 
Cidade e campo, na região, correspondem a moradores das vilas e da colônia, ou seja, da zona urbana e rural, cujos trabalhos e ações têm perspectivas diversas. Possuem posições religiosas e políticas diferentes. Tais diferenças podem ser hoje verificadas nos resultados das eleições municipais. Nesta região, nos municípios cuja população urbana é maior do que sua população rural, os eleitores votam em candidatos e partidos com perfil progressista, enquanto a população  rural prefere os de partido e perfil conservador.


SOBRE A POLÍTICA

A diferença entre o homem urbano e o colono ocorre na religião e na política. O homem pobre da cidade aos poucos vai se voltando para as novas religiões evangélicas e pentecostais, lotando os novos templos que se instalam em grande número e abandonando a Igreja de suas raízes culturais. O colono continua com sua crença tradicional, trabalhando em festas da Igreja sem cobrar por seus serviços, e destinando o lucro dos eventos para a Paróquia. Aparentemente ainda não há na zona rural outros cultos e outros templos.
 O industrial da cidade usa a política - e em muitos casos até da religião - para seu benefício, como uma forma de investimento cujo retorno é sempre garantido. O colono, por outro lado, auxilia a religião com sua contribuição. Acredita que assim agindo investe em Deus e que Ele continuará protegendo sua produção. Ambos usam na religião um sistema de trocas, cuja forma é diversa. Esta diferença não significa que o industrial seja mais esperto do que o agricultor, mas demonstra que cada um é profundamente marcado em sua ação  pelo seu modo de fazer e de produzir.
    Desde os primeiros tempos da ocupação da terra, no último quartel do século XIX, outras crenças existiram. Em Caxias, em 28 de janeiro de 1886, foi organizada a Loja Maçônica “Força e Fraternidade”, a primeira da região. Anos mais tarde, em 1894, em Bento Gonçalves passou a funcionar a Loja Concórdia. Segundo Colussi, "Grande número de imigrantes fazia parte desta sociedade; em Caxias havia 103 membros e, em Bento Gonçalves, 69”.
           A criação e a existência de lojas maçônicas nas colônias consideradas redutos exclusivo de católicos revela que a hegemonia da Igreja tinha seus opositores. A leitura das atas das lojas revela que muitos dos iniciados eram agricultores, que viviam em seus lotes coloniais. Muitos destes colonos maçons eram inspetores de travessão, ou seja, encarregados pela Comissão de Terra de vigiar os outros colonos.
A proclamação da república não foi recebida com alegria na região. Floriano Molon informa que diziam seus antepassados que “no dia 15 de novembro o Brasil devia chorar, não fazer festa”.  Grande parte dos colonos eram monarquistas e lembravam com gratidão D. Pedro II, que tinha pago sua  a viagem.
Também o papel da Igreja, através do clero local, foi importante na condução da política regional. A tutela política da Igreja se manifesta através da criação das Ligas Católicas e mais tarde nas ligas eleitorais católicas, que conduzem os votos de seus fiéis não para Cristo, mas para os candidatos aprovados pelo controle da Igreja.
Segundo Costamilan, a política neste período é instável e turbulenta, ocorrendo uma revolta popular em 25 de julho de 1892, que depõe o Congresso Municipal pela segunda vez. Oito dias mais tarde, o Conselho é reconduzido ao poder através da força do governo estadual. As revoltas dos colonos contra o governo estadual ocorrem pela cobrança excessiva de impostos. Delas participaram mais de trezentos homens.
As lutas regionais sempre estiveram vinculadas às questões estaduais. A política riograndense foi marcada pela luta entre federalistas e republicanos, em 1893, que deu origem à Revolução Federalista, cujas causas estão inseridas na própria instabilidade política da recente ordenação republicana. A região não ficou imune aos combates, estando situada a meio caminho entre os Campos de Cima da Serra e a capital provincial. Era  passagem obrigatória das duas facções em busca de abastecimento para suas tropas.
Os imigrantes católicos em sua maioria tinham afinidades com os maragatos. Como o líder do partido, Silveira Martins, eram conservadores e apreciavam a monarquia. Já, as elites urbanas regionais eram republicanas. Os colonos guardavam um velho sonho monarquista, o que os levou a optar pelo Império do Brasil. Os republicanos (ou periquitos) lutavam pela sua república positivista, enfim conquistada.
A Revolução acarretou mortes e prejuízos na região povoada por colonos italianos. Assediados pelos litigantes, passaram por momentos difíceis. Os prejuízos e os danos materiais sofridos na região são incertos, como também o é o número de vítimas. Conta Adami que no dia 6 de dezembro de 1893 foram encontrados dois corpos, amarrados e degolados no fundo de um barranco na estrada que levava a Nova Trento (hoje Flores da Cunha). Em Alfredo Chaves, lembra Helena Amantea, houve pelo menos três mortos nas famílias Bacin, Pegoraro e Dalponte. Segundo a Ordem do Dia N º 56, de 1º de julho de 1894, dada pelo comandante das tropas legalistas, Capitão Francisco Alves dos Santos, foram vinte os cadáveres encontrados nas ruas de Caxias, um deles o do capitão Miguel Antônio Dutra Neto, “apunhalado e massacrado covardemente pelos miseráveis”. Entre os mortos havia um tenente, um alferes, um sargento e dois cabos.
As lutas regionais têm seu lugar assegurado na imprensa. No período compreendido entre 1897 e 1997 na região circularam nada menos do que 193 periódicos. Muitos deles tinham vínculos políticos partidários. Entre eles havia os que defendiam o papado contra o Reino da Itália, os que eram maragatos, republicanos, integralistas, getulistas, e até um fascista e um comunista.  Alguns eram de irmandades como a Maçonaria e outros  da Igreja católica.
As questões políticas ocorridas na região durante as duas guerras mundiais são um capítulo à parte na história riograndense. O espaço limitado permite apenas contatar que os moradores da região mais sofreram do que realizaram movimentos durante os dois conflitos.  Na década de 1930 houve alguns novos enfrentamentos entre as autoridades  e a região, em relação á cobrança de impostos, tendo como palco Antônio Prado.
Os "pacíficos" colonos também sabiam lutar por seus interesses. Se as lutas entre os intendentes maçons e os conselheiros católicos da região poderiam servir como matéria-prima  para novos Guareschi retratarem outros Pepones e Dons Camilos,  perdidos nos  vales e  montanhas da serra, marcados  pelo fundamentalismo  político e religioso, alguns episódios são tão trágicos que clamam por um Sófocles.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul – I tomo: 1864 – 1970. Caxias do Sul: Edições Paulinas, 1971.
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ANTUNES, Dumiense Paranhos. Documentário Histórico do Município de Caxias do Sul:1875-1950. São Leopoldo: ARTEGRÁFICA,1950.
Cinquantanario della colonizzazione italaina nello Stato del Rio Grande del Sud:1875-1925.Porto Alegre/ Roma: Globo/ Ministero degli Affari Esteri, 1925.
COLUSSI, Eliane L. A maçonaria gaúcha. Passo Fundo: EDIUPF, 1998.
COSTA Rovílio; BATTISTEL, Arlindo. Assim vivem os italianos: vida, história, cantos, comidas e estórias. Porto Alegre: Est,1984.
COSTAMILAN, Ângelo Ricardo. Homens e mitos na história de Caxias. Porto Alegre: Est 1989.
CRUZ NETO, João da. Sinopse Histórica da Aug. e resp. Loja Força e Fraternidade de Santa Tereza de Caxias do Sul: 1887 –1903. Monografia não publicada, elaborada em Caxias do Sul, 1977.
DE BONI, Luís Alberto (Org.) Brasil e Itália. Caxias do Sul: Est/Educs,1983.
DE BONI, Luís Alberto; COSTA, Rovílio. Os italianos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Est /Educs/Correio Riograndense.1984.
GIRON, Loraine Slomp. As sombras do Littorio: fascismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Parlenda,1994.
IANNI,Octavio Aspectos políticos e econômicos da imigração italiana. In: Imigração Italiana: estudos. Caxias do Sul, EDUCS,1979.
 JORNAL DE CAXIAS. Ano II, Nº 617, 17 de  dezembro de 1984.
MOLON,Floriano; História de uma família. Porto Alegre: Est, 2001.

POZENATO, Kenia M.Menegotto e GIRON, Loraine Slomp. 100 anos de imprensa regional 1897-1997. Caxias do Sul: Educs,2004.

Um comentário:

  1. Muito bom o artigo e o Blog como um todo!!! Foi uma das consultas base de uma resenha que também escrevi!

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