sexta-feira, 10 de outubro de 2014

REGIÃO: PRIMEIROS CINEMAS



                                                                                             Kenia M. M. Pozenato
                                                                                  Loraine Slomp Giron



                                                                                                                                                         
O projeto Cinemas na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul: 1900 - 2000 ligados ao Projeto 100 Anos de Comunicação, pesquisou a história da Região a partir do levantamento dos cinemas que existiram e dos que ainda existem até a atualidade, tendo sido realizado o registro histórico e iconográfico de cada uma das casas de espetáculo encontradas, através de entrevistas e de fontes documentais.
            Foi verificada a existência de cinemas nos municípios de Caxias do Sul, Flores da Cunha, Farroupilha, São Marcos, Bento Gonçalves, Santa Teresa, Monte Belo do Sul, Garibaldi, Carlos Barbosa, Salvador do Sul, Coronel Pilar, Antônio Prado, Nova Roma do Sul, Nova Pádua, Ipê, Veranópolis, Nova Prata, Vila Flores, mas poucos desses municípios possuíram casas de espetáculos no período analisado. Não foram encontrados testemunhos do período inicial em várias das cidades estudadas.
            A presente comunicação tem como objetivo apresentar os primeiros cinemas locais, nos tempo inicial da introdução da Sétima Arte na Região. As histórias aqui descritas estão baseadas nas memórias dos moradores mais antigos e em fontes documentais, as quais, por sinal, são irrisórias, quase inexistentes. As memórias mais antigas referem-se aos cinemas de Caxias, Antônio Prado, Bento Gonçalves e Flores da Cunha (Nova Trento).



EM CAXIAS

            O cinema em Caxias começa com o Teatro Velho, que funcionou no final do século XIX e início do XX, na esquina das ruas Visconde de Pelotas e Os Dezoito do Forte, onde hoje funciona o Donna Shopping. No início, estava instalado num prédio de madeira, tendo mais tarde sido reconstruído em alvenaria, com camarotes e balcões. O palco do Teatro Velho foi decorado pelo artista plástico Pietro Stangherlini.
            As notícias e as lembranças sobre o Teatro Velho são poucas. Recebeu este nome porque, no início, servia como casa de espetáculos teatrais, onde artistas caxienses e de outros lugares apresentavam números artísticos. Eram artistas amadores que cultivavam as artes cênicas, como Olympio e Maria Emilia Rosa, e Corina Stangherlini. Os espetáculos, tanto musicais como teatrais, eram montados e apresentados para o público local.
            Nos primeiros tempos as máquinas de projeção eram transportadas de um lugar para outro no lombo de mulas, e os espetáculos cinematográficos eram apresentados em várias cidades, sempre em locais que abrigassem grande número espectadores. Em Caxias, o Teatro Velho era o local apropriado para passar as fitas de cinema. Músicos locais eram contratados para animar a apresentação dos filmes mudos e a população acorria em peso às apresentações. Eram dias de festa e animação para a então pequena Vila. As primeiras apresentações cinematográficas vinham sempre de fora, dependiam do cinema ambulante, de pessoas que traziam e projetavam os filmes, cobrando ingressos. Pagavam algum aluguel pela sala e logo iam embora. Não permaneciam na cidade nem as máquinas, nem os lucros resultantes dos espetáculos.
A primeira nota sobre o Teatro de Caxias no jornal aparece em O Cosmopolita de 11 de janeiro 1903. Informa sobre a realização de um grande concerto vocal e instrumental com os artistas Sybila Fontoura, Amália Giesen, Virgílio Fontoura, Ítalo, Luiz, Hugo e Ernesto Bersani. Nesse espetáculo foram apresentadas áreas de óperas, canções italianas e peças musicais. Na semana seguinte, no dia 18 de janeiro, no mesmo jornal, há um longo comentário sobre a atuação dos artistas amadores, que, segundo o articulista, “são péssimos”, nada mais do que simples diletantes.    
Em 1905, O Cosmopolita ( 11 de março de 1905, p. 2.)
, na coluna chamada Parte Italiana, informa que o espetáculo cinematográfico foi suspenso por ter-se estragado o cinematógrafo, o que revela que os espetáculos eram realizados de forma precária.
Com o passar do tempo, os cinemas se fixam nas cidades, mas os filmes continuaram a ser transportados em lombo de mulas. Nessa época, as primeiras máquinas de projeção compradas eram antigas, de segunda mão. Só bem mais tarde foram comprados modernos equipamentos de projeção e construídos prédios adequados para espetáculos cinematográficos.
 Os primeiros empresários do setor cinematográfico de Caxias foram Hermenegildo Burato, João Finco e Pedro Fonini, que mandaram construir a primeira sala destinada à exibição de filmes: a do Cinema Juvenil. No início funcionou na sede da Sociedade Caxiense de Mútuo Socorro Príncipe di Napoli, situada na Rua Garibaldi, entre as ruas Júlio de Castilhos e Sinimbu. Mais tarde foi transferida para um prédio de madeira, situado na esquina das ruas Dr. Montaury e Júlio de Castilhos, no lote nº 10 da quadra 22.  Corria então o ano de 1907.  Caxias era uma pequena vila e o transporte ainda era realizado por meio de mulas e carretas. A população do município era de cerca de 30 mil habitantes, mas na vila viviam apenas 2 mil habitantes, já que 90% deles ainda viviam na colônia.
O Cinema Juvenil teve maior duração. Ainda em 13 de dezembro de 1915, anunciava sua programação no jornal Cidade de Caxias  como se pode ver pela reprodução a seguir:

PROGRAMAÇÃO PARA AMANHÃ

1° confecção de um busto, natural, 2º Amor Tardio – Drama, 3° Túlio quer emagrecer - cômica, 4º João O marinheiro enamorado, 5° Sixto Quinto – grandioso e soberbo film histórico época 1590, 6° Robinetto sua mulher e seu primo ultracômica. Chamamos a atenção para o filme Sixto Quinto”.

Numa nota apresentada na Seção Livre, o mesmo jornal informa:
Será exibidos no apreciado Cinema Juvenil a bela fita d’arte grandemente aplaudida em outras localidades; Filme Histórico baseado na França com a extensão de 500 metros - O processo Dreyfus -. E ainda A Ópera “Norma” acompanhada pela orquestra do cinema seguido pela fita de atualidade – A revolta do batalhão naval do Rio de Janeiro.
Nos dois casos ficam claro que na época a programação era composta por vários filmes de curta duração em sequencia e que o espetáculo era variado, apresentando musicais, comédias, dramas, filmes históricos e documentários sobre acontecimentos nacionais, como o que relata a Revolta da Armada, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1910.
A importância do cinema não se limitava à apresentação dos espetáculos e à influência no gosto individual da população, influenciou também a vida social da pequena cidade. Essas mudanças foram tão importantes que mereceram até nota no jornal, como a que se pode encontrar na Secção Livre de O Evolucionista, de 07 de fevereiro de 1916, que faz alusão ao surgimento de um novo e moderno sistema de namoro propiciado pelo cinema, em que os namorados faziam um prolongado passeio até o bairro de São Pelegrino e depois iam ao cinema, assistir ao filme. Os namoros, antes restritos às salas das casas de família, ou às festas religiosas, começam a realizar-se ao ar livre e nas salas de cinema.
Pouco tempo depois do Juvenil, foi inaugurado o Cinema América, situado na esquina das ruas Marquês do Herval e Júlio de Castilhos, onde hoje funciona o Banrisul. A casa era de propriedade de Francisco Buffardi. Com a inauguração da nova casa de espetáculos, tem início uma acirrada concorrência entre os proprietários dos dois cinemas.             Os proprietários do cinema Juvenil, para desanimar os do América a prosseguir, faziam distribuição gratuita de ingressos para os espetáculos cinematográficos. O Cinema América, como revide, passou a apresentar sessões ao ar "livre", motivo pelo qual a população de Caxias se aglomerava em frente a uma tela improvisada com um pano e colocada no corredor que existia entre o cinema e a residência de Ambrósio Bonalume, onde mais tarde foi construído o Cine Guarany.
O Cinema América fechou, não resistindo à concorrência. O equipamento foi vendido para José Balen e outros.  Foi então aberto o Cinema União em prédio alugado de Francisco Balen, situado na Rua Júlio de Castilhos, próximo da esquina com a Alfredo Chaves. Este teve curta duração, sendo posteriormente vendido a Argeu de Ben, que lhe deu o nome de Cinema Íris. Nem a memória nem as fontes escritas preservaram a história desta casa de espetáculos. Sobre esses cinemas restou apenas breve citação do historiador João Spadari Adami (1966,p361)
O Cine Ideal, aberto a seguir, teve como proprietários Caetano Finco, Raymundo Buratto e Ludovico Sartori. Funcionava em prédio rústico de madeira, na esquina das ruas Marquês do Herval e Júlio de Castilhos. O prédio era o mesmo em que haviam funcionado outros dois cinemas. O Cine Ideal durou mais tempo que os anteriores e sua programação era anunciada nos jornais locais. No dia 8 de novembro de 1914 era anunciado, no jornal O Cosmopolita(08 de novembro de 1914. p.3), o importante filme Mas... Meu amor não morre, tendo como protagonista Lydia Borelli. Segundo este jornal, era o cinema preferido da cidade.
O jornal A Encrenca ( dezembro de 1914, p. 2). apresenta o Cine Ideal como o mais simpático centro de diversões caxienses, anunciando a projeção dos filmes A Bíblia e O rei de ouro, como dramas de grandes aventuras. Vê-se que os cinemas ganham espaço nos jornais e que os mesmos provocam novas mudanças de hábitos entre os caxienses, e anunciadas nos jornais.
O jornal A Encrenca apresenta pequenas notas sobre o que acontece nos cinemas da região, chamadas Vida alheia ou Estão dizendo, notas que trazem informações interessantes sobre as relações entre as casas de espetáculos e a vida social da cidade e sobre as péssimas condições da exibição. Segundo o jornal, chegaram a ocorrer dezesseis interrupções numa única projeção, devido à falta de habilidade do operador. Em outra nota, encontra-se a alusão a um namoro no interior da cabine de projeção do cinema, onde uns "noivinhos" não deram atenção ao filme, "trocando beijinhos".·.
 A coluna Estão dizendo, de 1º de janeiro de 1915, informa que o Cine Ideal é o “paraíso terrestre para conquistar, já que é ponto delicioso para esse esporte". Outras afirmações revelam mudanças no namoro, com liberação nos costumes, já que um jornal alerta que as sessões com fitas duplas "estão prejudicando a zona". Parece que na cidade o cinema estava intimamente associado ao namoro, tanto entre jovens como entre viúvos, propiciando "a troca de namorados". A palavra zona é uma clara menção à zona do meretrício, que existia em Caxias, naquela época.
O público nem sempre era grande nas sessões cinematográficas do Ideal, poucas eram as noites de lotação esgotada apesar da publicidade e dos apelos no jornal.  Na coluna Echos da Semana do mesmo periódico é anunciada a apresentação “dos aplaudidos artistas Max e Suely Giteelmann”, mas uma crítica assinada por Bacicia A (ENCRENCA, dezembro de 1914, p. 2)fala da péssima atuação dos diletantes, num drama apresentado por artistas locais no cinema.
O Cine Ideal continuou por muitos anos; em 1914 era considerado o mais popular cinema da cidade de Caxias. Sobre ele o jornal O Cosmopolita, em 19 de outubro desse ano, publicava anúncios onde são elogiadas as condições de ventilação, do prédio e de ponto esplêndido, exibindo ainda “films d’arte das melhores fábricas”. A Praça Dante Alighieri, onde funcionava o Cine Ideal, era o ponto mais importante do centro da cidade. Ali também estavam instalados quiosques comerciais, nos quais era vendido de tudo um pouco. Além da Igreja Matriz, havia também a Padaria Familiar e o Café América, sendo que este último dava como referência para sua localização o Cine Ideal, que ficava ao lado, na Rua Júlio de Castilhos. Próximo ao cinema, na Rua Marquês do Herval, funcionava o Hotel Globo, onde os visitantes e viajantes comerciais se hospedavam.
            Após o fechamento do Cine Ideal foi inaugurado, no mesmo prédio, o Cinema Riograndense, de propriedade de Mário Batista Cristófari. Nesse prédio, situado na Rua Júlio de Castilhos, próximo à Rua Alfredo Chaves, funcionaram sucessivamente os cinemas Colyseu, Íris, União e Pathé. Com exceção do Colyseu, todos os demais com pouco tempo de duração.
            O cinema Colyseu foi inaugurado em 6 de fevereiro de 1915. Seus proprietários eram Carlos Balen, Luiz Batastini, Ernesto Rossi, Ângelo Rech, Luiz C. Timers, Carlos Adami, Adelino Rech e Ângelo Chiarello. Todos trabalharam no cinema, o primeiro como operador, e os demais eram componentes da orquestra.

No jornal CITTÀ di Caxias em 1919 uma coluna intitulada NOTIZIE VARIE: totalmente em italiano que trata dos espetáculos teatrais aparece

 TEATRO JUVENIL
Ormai e cosa certa che avremo fra noi, la settimana prossima l’eccellente companhia italiana di operetta: Maresca – ciprandi – Buccini.
Il debutto della compagnia é stato fissato per martedí prossimo; ignoramo però com quale operetta.
Il «CITTÀ di Caxias» augura ai distinti artisti lieta permanenza nella perla delle colonie. (sic).( de 16 de novembro de 1919,p.  4)

            Hermenegildo Meregalli, com 96 anos na época da entrevista, ainda que passados tantos anos lembra-se de cenas divertidas que lá ocorriam, como a de uma freira que subia e descia a escada e sobre a qual diziam "derramaram leite em cima da cabeça dela. Naquele tempo, eu tinha 15 anos. Eu me lembro de um filme que passava naquele tempo, de Rodolfo Valentino".
Lembra também que o Colyseu durante algum tempo foi o único cinema de Caxias. Isso "foi antes de 1920 e o cinema ainda era mudo. Então  começaram a passar um filme de bichos e outras coisas, e quando de repente apareceu um papagaio, lá, que ia descendo: ‘Varda lá o papagaio!’ (Olha o papagaio!, no dialeto da região), diz o Ulysses (menção ao irmão menor). E todo mundo lá dentro deu uma risada".   
O Colyseu lembra Sylvia Ártico, "tinha sala de filmagem de luz e sombra. Na plateia havia cadeiras coloniais de palha e, por serem os filmes mudos, na época, havia uma orquestra composta de 3 violinos, violão, violoncelo, clarinete".
             Meregalli lembra ainda que houve grande publicidade para o lançamento da primeira versão do filme Ben-Hur, sendo realizada até uma parada na Rua Júlio de Castilhos. Hugo, seu irmão mais novo, desfilou vestido de soldado romano, "com a saia curta de romano, com as pernas de fora; saia, chapeuzinho e chicote. Desfilou em cima de uma carroça puxada a cavalo, que corria em disparada". Segundo Meregalli, muita gente assistiu à parada e gostou, mas Hugo nada recebeu pela apresentação, apenas a entrada. Este episódio ocorreu no ano de 1925 ou 1926.
            A inauguração do Cine Theatro Apollo, em 1º de janeiro de 1921, com uma ampla sala de projeções, inicia o período de ouro do cinema em Caxias.

           
EM ANTÔNIO PRADO

         A história das casas cinematográficas em Antônio Prado inicia em 1912, com o Cinema Familiar. Em 14 de julho de 1927 foi fundado o Cine Familiar do Clube Gaúcho. A rivalidade entre os dois cinemas era muito grande e sem complacência, iniciou com o próprio nome. As sessões eram realizadas exatamente no mesmo horário, para verificar qual dos dois atraía mais público. Essa rivalidade chegava a ponto de um dos cinemas roubar os cartazes do outro, conforme lembram os moradores mais antigos de Antônio Prado.
Muito lembrada m Antônio Prado foi Rosalba Fedumenti Dotti, professora de música e natural de Caxias, que fazia parte de uma pequena orquestra, normalmente de quatro ou cinco instrumentos, que acompanhava os filmes tocando sua trilha musical, cuja partitura acompanhava a fita. Na época do cinema mudo, os músicos eram figuras importantes para o espetáculo.
Normalmente eram realizadas duas sessões, aos sábados e domingos. Na projeção trabalhava Paulo Zaniol.
         Em 26 de dezembro de 1928 foi criado o cinema do Clube União, para competir com o do Clube Gaúcho, e que funcionou até 25 de maio de 1936. Situava-se em frente à atual sede do Clube União, num prédio construído em madeira de lei, considerado muito bonito pelos moradores. Infelizmente, segundo depoimentos obtidos, a casa foi demolida e sua madeira vendida para que o Clube União, com o dinheiro da venda, pudesse concluir sua sede social.
         As lembranças sobre esses cinemas são esparsas, como as de que suas cadeiras eram de palha e que nos dois cinemas podiam ser acomodadas de 300 a 350 pessoas. Havia uma única máquina de projeção e para trocar o rolo do filme havia intervalos. Quando acendiam as luzes, a plateia aproveitava para conversar. Nos cinemas eram apresentados também espetáculos teatrais, como os montados pela família de Pedro e Conceta Ranzolin, que trouxe da Itália o gosto pelo teatro e montou uma pequena companhia que encenava peças, possuindo seu próprio guarda-roupa artístico.
         No Clube Gaúcho foi inaugurado em 1927 o Cinema Gaúcho, pertencente à família Palombini.  Da mesma forma que os anteriores, tinha cadeiras de palha e acomodava entre 300 e 350 pessoas. As sessões eram realizadas aos sábados e domingos.
         É lembrado pelos entrevistados um episódio triste ligado ao Cinema Gaúcho. Calvino Palombini, filho do proprietário, era operador do cinema e sofreu um acidente. Para fazer um conserto, subiu num poste da rede elétrica. Caiu da escada, bateu com a cabeça e, em consequência da queda, veio a falecer.



EM NOVA TRENTO

Não só em Caxias e em Antônio Prado havia cinemas no início do século XX. Os principais distritos também possuíam prédios onde podiam ser apresentados filmes. Claudino Antônio Boscatto
(1984,p.68) lembra que em Nova Trento havia um prédio de madeira, erguido por volta de 1910, com o aproveitamento da madeira da antiga Igreja Matriz, demolida para construção da atual. Este local servia para salão de festas, onde se realizavam bailes, representações teatrais e projeções de figuras em movimento, com a primitiva lanterna mágica e, mais tarde, de cinema mudo. Pertencia à Sociedade Pró-Trento. Com a dissolução da sociedade, no início da década de 40, a Paróquia de São Pedro ficou como única proprietária do referido prédio e terreno, conforme rezavam os estatutos da mesma Sociedade.
            As projeções de filmes mudos em Nova Trento começaram em 1920, aproximadamente, com a energia elétrica sendo fornecida diretamente para o cinema por um pequeno motor de propriedade de Alexandre Micheletto. Na época, ainda não havia energia elétrica na vila. O projetor de filmes era manual, e como melhor operador destacou-se Mansueto Carpeggiani.
            Os filmes eram transportados de Caxias, a cavalo, dentro de pessuelos - nome dado aos sacos de pano ou couro postos sobre os cavalos - e eram projetados aos sábados e domingos. A sessão das 20 horas era anunciada com espocar de foguetes, trinta minutos antes do início. As sessões de domingo, em matinée, iniciavam às 14 horas.
            Uma orquestra acompanhava os filmes mudos para animar os espetáculos. Formavam essa pequena orquestra a pianista Lélia Mascarello, a violinista Zaira Mascarello e o clarinetista João Mambrini. Os entrevistados lembram que músicos e repertório eram muito bons. Muitas pessoas iam ao cinema mais para ouvir a orquestra do que para ver o filme.
            Ao contrário da música, a imagem nem sempre era clara, pois ficava apagada pela fumaça produzida pelos espectadores, que podiam fumar à vontade durante a projeção dos filmes. Esse trabalho exigia muito cuidado, pois a manivela devia ser rodada com as rotações certas. Estas não podiam ser muito vagarosas e nem muito velozes, sob pena de apresentar as cenas em câmara lenta ou extremamente aceleradas, o que tornava o espetáculo hilariante ou ridículo. Para projetar o filme, o operador devia fazê-lo com a mão direita, pois a manivela ficava à direita do projetor. Lembra Boscatto que,

 Numa noite de domingo, enquanto rodava o filme – seriado – 'O Furacão', o operador Mansueto Carpeggiani – muito atento no desenrolar do enredo esqueceu-se de rodar a manivela do projetor na velocidade necessária. O filme era muito emocionante e com lances imprevisíveis. Em um deles, o mocinho e a mocinha estavam amarrados nos trilhos da ferrovia – haviam sido presos pelos bandidos – enquanto o trem já chegava bem próximo a eles. Durante essa cena, o operador ficou um tanto chocado com o que poderia acontecer e rodou o filme lentamente – talvez inconscientemente. Quem sabe quisesse salvar o mocinho e a mocinha, que iriam ser esmagados pelo comboio ferroviário. De repente, absorto que estava com o desenrolar dos fatos, parou de rodar a manivela do projetor e a pantalha do aparelho ficou parada na parte escura. Os espectadores em protesto sapatearam como forma de reclamação pelo filme ter sido interrompido na melhor parte. Só então o operador se deu conta do "cochilo" involuntário, mas a fita já havia queimado, por causa da parada. Ele teve que emendá-la e depois continuou a rodar o filme. Após o término da sessão, desculpando-se, disse “Sempre há a primeira vez, mesmo sendo considerado o melhor dos operadores.·(IDEM).


            Boscatto ainda diz que todos os filmes eram rodados com somente um projetor, por isso sempre havia alguns minutos de espera a cada rolo que terminava, dando tempo para que o operador o substituísse por outro. "Na metade do filme acontecia um intervalo de meia hora para ir até o bar do cinema tomar refrigerantes ou adquirir caramelos". No início da década de 20, a sala de cinema foi alugada para Francisco Mascarello, outro entusiasta da arte cinematográfica.
                        Foi nesse salão que aconteceu a famosa história do galo, em 1922. Nesse ano houve a apresentação de um mágico que dizia que cortaria a cabeça de um galo, depois a recolocaria e o galo voltaria até a cantar como se nada tivesse acontecido. Na ocasião, todos os ingressos foram vendidos. Começou o espetáculo e, a certa altura, o mágico solicitou ajuda para o delegado e uma outra pessoa influente na cidade. Alguns chegam a dizer que era o juiz, mas não há comprovação. O delegado segurou a cabeça do galo e o outro, o corpo. Nas palavras de Severino Bulla, "aí cortaram a cabeça do galo, que sujou tudo. O mágico pediu para nos concentrarmos para voltar a grudar a cabeça do galo. Então ele saiu, pegou o cavalo e o dinheiro e se mandou, até hoje".
            Desta forma, aconteceu no cinema, palco do episódio, o fato que deu a Flores da Cunha, então chamada de Nova Trento, o nome de "Terra do Galo".


EM BENTO GONÇALVES

            Um dos primeiros cinemas de Bento Gonçalves é  lembrado por  Lea Ponticelli Dall Ígnea, nascida  em 1916, quando já existia o cinema de sua família.

Eu me criei lá dentro do cinema, aí eu cuidava dele desde os seis anos. O cinema era dos meus pais e antes deles de meus avós paternos". (...) "e eu me criei lá, isso. Saí com a idade de 17, 16 anos, quando meu pai vendeu o cinema. Nesta época o cinema era mudo. Noé Ponticelli, meu pai, tinha uma "banda" que animava as apresentações.

            Seu nome era Cine Teatro & Café Bento Gonçalves e foi inaugurado no dia 13 de agosto de 1911. Na realidade, era conhecido apenas como Cinema Ponticelli. Fundado por Maria Ponticelli, mãe de Noé, situava-se em um prédio de alvenaria, na esquina das ruas Saldanha Marinho com Marechal Deodoro e funcionou até 1934.
            O Cine Teatro & Café Bento Gonçalves tinha cadeiras coloniais com acento de palha, ligadas entre si por uma ripa pregada atrás delas, para não serem movidas do lugar. Na plateia, cabiam 500 pessoas. Havia um corredor no meio e mais um de cada lado, para facilitar a circulação. Havia ainda camarotes, onde cabiam seis pessoas e que podiam ser alugados por mês. Desta forma, os espectadores que os alugassem podiam assistir a novos filmes todas as noites, uma vez que a programação mudava diariamente. Segundo a programação apresentada nos jornais, era composta de quatro ou cinco pequenas fitas, salvo as grandes produções, cuja apresentação era única.
            A população ficava sabendo do início da projeção através de uma sirene, que avisava nos dois últimos quartos de hora. "Antes o início da sessão soava a sirene, marcando a hora do início do filme. Tocava, então o pessoal já sabia, ia assistir ao filme".
            Segundo Dall'ignea, outra forma de saber se haveria ou não sessão cinematográfica à noite, era através de uma lâmpada que uma estátua de mulher, colocada na cúpula da parte central do cinema, segurava na mão esquerda: "quando tinham os filmes eles acendiam aquela lâmpada, então toda a cidade podia ver que a projeção tinha iniciado".
            Na metade do filme havia um intervalo de quinze minutos, para que o rolo fosse rebobinado. "no intervalo em geral os homens saíam tomar cafezinho e comprar balas. Enquanto as mulheres ficavam dentro do salão, não saíam". Mas havia outros intervalos, quando arrebentava o filme, "porque era celuloide, aí ele (o projetista) tinha que parar pra colar e continuar". Outros intervalos ocorriam "depois de cada fita, cada rolo, era um intervalo de cinco minutos, era para trocar o filme".
            Nesta época só havia este cinema e só muitos anos depois abriu o cinema Aliança. "em 40 já tinha fechado o nosso. O pai ficou com o prédio mais um tempinho, depois derrubaram." Mas o cinema servia para espetáculos teatrais e outras atividades sociais: "depois da sessão algumas vezes havia reunião dançante".
            Lembra Dall'Ignea:
À tarde, por exemplo, depois do matinês a gente amontoava todas as cadeiras e dançava. E quando tinha baile era tudo baile de gala, sempre. Então tiravam todas as poltronas e virava em baile, em clube. Todos os domingos de tarde a gente dançava. Todos os domingos de tarde, depois da matinês, depois do filme, a gente amontoava as cadeiras e dançava.

            Na frente do cinema ficavam os cartazes anunciando a programação, que o próprio dono do cinema desenhava e colocava na porta. Eram feitos de madeira. "As pessoas da cidade, bem arrumadas, passavam pela frente do cinema para olhar o programa a ser apresentado, e então entravam". Naquela época "todo mundo ia ao cinema, não tinha outra... não tinha opções, tinha que ir ao cinema, ninguém falhava".


CONSIDERAÇÕES FINAIS

            As lembranças dos primeiros cinemas da região são vagas e imprecisas. Os nomes daqueles homens ou de suas pequenas empresas que literalmente levaram o cinema nos lombos de mulas para regiões mais distantes foram esquecidos. Nas histórias regionais os cinemas são os grandes ausentes. A lembrança, tanto dos que assistiram às "fitas", como daqueles que as passavam, está morta e para sempre perdida.
            Apenas os jornais retratam um pouco sobre os primeiros tempos dos cinemas, pois acompanharam a concorrência entre os exibidores.
            Os primeiros cinemas, como os primeiros jornais regionais, tiveram curta duração, sinal evidente de sua baixa rentabilidade. Só o fato de serem pequenas empresas familiares, onde a família desempenhava várias funções, conseguia mantê-los abertos. Caso típico de proprietário de cinema é o de Noé Ponticelli, de Bento Gonçalves, que dirigia a empresa, tocava na orquestra que acompanhava a apresentação dos filmes mudos, e ainda fazia os cartazes. Ou seja, como outros proprietários dos primeiros cinemas, desempenhava várias funções. Estava distante o tempo da especialização e o da profissionalização da diversão cinematográfica.



BIBLIOGRAFIA

ADAMI, João Spadari. Caxias a surpreendente. Festa da Uva e I Exposição Feira Industrial. Caxias do Sul: São Miguel, 1954.

ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul – I tomo: 1864 – 1970. Caxias do Sul: Edições Paulinas, 1971.

ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul. 4º Tomo. Caxias do Sul: Gráfica e Editora São Paulo, 1966.

ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul. Caxias do Sul: São Miguel, 1972.

ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul: 1864 – 1962. Caxias do Sul: São Miguel, s/d.
ÁLBUM COMEMORATIVO DO 75º ANIVERSÁRIO DA COLONIZAÇÃO ITALIANA NO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre: Globo, 1950.
ANCARINI, Humberto. Relatório: A colônia italiana de Caxias. Rio Grande do Sul, Brasil (1905). In: DE BONI, Luís A. (Org.). A Itália e o Rio Grande do Sul, IV Porto Alegre: EST, 1983.
ANTUNES, Duminiense Paranhos. Documentário histórico do município de Caxias do Sul. São Leopoldo: Arte Gráfica, 1950.
BARBOSA, Fidélis Dalcin. Antônio Prado e sua história. Porto Alegre: EST, 1980.
BAUDRILLARD, Jean. Tela total: mitos – ironias da era do virtual e da imagem. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 1997.
BOSCATTO, Claudino Antonio. Memórias de um neto de imigrantes italianos - Pioneiros de Nova Trento.  Flores da Cunha: O FLORENSE,1994.
CAPRARA, Andréa. Bento Gonçalves – jornalismo opinativo. Monografia do Curso de Comunicação Social – Habilitação Jornalismo. São Leopoldo, UNISINOS, julho de 1991.
CASARIN, Francesca M. Treviso - Genova: andata e ritorno. Treviso: F. Benetton, 1990.
CIAPELLI, Enrico. Emigrazzione allo Stato del Rio Grande del Sud. IN: Bolletino dei Ministero degli affari esteri. Roma, N° 123,1905.
Cinquantenario della colonizzazione italiana nello Stato del Rio Grande del Sud:1875-1925. Porto Alegre/ Roma: Globo/ Ministero degli Affari Esteri, 1925.
CLEMENTE, Elvo; UNGARETTI, Maura. História de Garibaldi. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.
COSTA, Rovílio (Org.). Raízes de Veranópolis. Porto Alegre: EST, 1998.
DE BONI, Luís Alberto. Bento Gonçalves era assim. Bento Gonçalves: EST/FERVI, 1985.
DE PARIS, Assunta (Coord.). Memórias: Bento Gonçalves – 109 anos. Bento Gonçalves: Prefeitura Municipal de Bento Gonçalves: Arquivo Histórico de Bento Gonçalves, 1999.
DE VELLUTIS, Francesco. Lo stato del Rio Grande del Sud e la  crisi economica durante l”ultimo quinquennio. In: Emigrazione colonie. V.III. America/Brasile; Roma/Manuzio, 1908.
FARINA, Geraldo. História de Nova Prata – RS. Caxias do Sul: EDUCS, 1986.
FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade. IN: LEGOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Tradução de Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
GALEAZZI, Zaira. 100 anos da cidade de Nova Prata: 1895-1995. Nova Prata: Toazza Artes Gráficas Ltda, 1998.
GIRON, Loraine Slomp. Caxias do Sul: evolução histórica. Caxias do Sul: EDUCS/EST, 1977.
KFOURI, Assef. In: MANNONI, Laurent A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo: SENAC/UNESP, 2003.
KIRCHER. Apud: TOULET, Emmanuelle. Cinématographe, invention du siècle. Col. Découvertes Gallimard. Paris: Gallimard, s/d.
MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo: SENAC/UNESP, 2003.
MIGOT, Aldo Francisco. História de Carlos Barbosa. Caxias do Sul: EDUCS/EST, 1989.
PERROD, Enrico.  As Colônias Italianas Conde D’ Eu e Dona Isabel. In: DE BONI, Luís A (Org.). Bento Gonçalves era assim. Porto Alegre: FERVI/Correio Riograndense/EST, 1985.
PESCIOLINI, Raneiri Venerosi. Le colonie italiane nel Brasile Meridionale. Torino: Fratelli Bocca, 1914.
RIZZON, Luiz Antônio; POSSAMAI, Pe. Osmar. História de São Marcos. Caxias do Sul: Ed. dos autores, 1987.

JORNAIS

A ENCRENCA. 20 de dezembro de 1914.

A ENCRENCA. 27 de dezembro de 1914.

A ENCRENCA. Nº 1, 20 de dezembro de 1914.
CAXIAS: Órgão Independente. 12 de abril de 1928.

CAXIAS: Órgão Independente. 12 de junho de 1929.
CAXIAS: Órgão Independente. 8 de outubro de 1933.
CIDADE DE CAXIAS: Orgam Republicano.12 de agosto de 1911.
CIDADE DE CAXIAS: Orgam Republicano. 13 de dezembro de 1911.
CIDADE DE CAXIAS: Orgam Republicano. 21 de dezembro de 1911.
CIDADE DE CAXIAS: Orgam Republicano. 23 de setembro de 1911.
CITTÀ DE CAXIAS. 14 de dezembro de 1921.
CITTÀ DE CAXIAS. 14 de dezembro de 1921.
CITTÀ DE CAXIAS. 7 de setembro de 1922.
CITTÀ DI CAXIAS. 16 de novembro de 1919.
O COSMOPOLITA: Orgam dos Interesses Coloniais.1º de agosto de 1902.
O COSMOPOLITA: Orgam dos Interesses Coloniais.11 de janeiro de 1903. 
O COSMOPOLITA: Orgam dos Interesses Coloniais.11  de julho de 1903.
O COSMOPOLITA: Orgam dos Interesses Coloniais. 14 de julho de 1903.
O COSMOPOLITA: Orgam dos Interesses Coloniais. 19 de junho de 1903.
O COSMOPOLITA: Orgam dos Interesses Coloniais. 11 de março de 1905.
O COSMOPOLITA: Orgam dos Interesses Coloniais. 19 de outubro de 1914.
O COSMOPOLITA: Orgam dos Interesses Coloniais. 8 de novembro de 1914.
O EVOLUCIONISTA. 7 de fevereiro de 1916.
O REGIONAL. 28 de maio de 1927.


ENTREVISTAS REALIZADAS

ENTREVISTADO:

DATA:
Assunta de Paris
15 de julho de 2004
Alda Menegotto Cipriani
14 de agosto de 2003
Áureo Bertelli
10 de setembro de 2004
Corina Michelon Dotti
15 de março de 04
David Andreazza
18 de março de 2004
Hermenegildo Meregall
17 de abril de 2003
Hilário Sgarioni
11 de dezembro de 2003
Ibanor Steffenon
31 de maio de 2004
João Cláudio Garavaglia
13 de julho de 2004
Lea Ponticelli Dal'Ignea
18 de abril de 2005

Luis Vicentim
04 de março de 2003
Mário Bocchese
15 de março de 2004
Severino Bulla
28 de outubro de 2003
Sylvia Gedoz Ártico
16 de agosto de 2003
Virgínio José Bortolotto (Nilo)
06 de dezembro de 2003














* Drª em Ciências da Informação e Comunicação pela Université D'Aix-Marseille (Marselha, França) e Profª do Departamento de Comunicação da UCS.
** Drª em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Profª do Departamento de História e Geografia da UCS.

2 comentários:

  1. Bom dia, Loraine.
    Quem me falou sobre você foi o Floriano Molon, inclusive me passou um número de telefone que não consigo ligar 54 4323-0753.
    Sou Márcia Monteiro...jornalista roteirista e estou fazendo pesquisa pra meu filme documentário O Vinho Brasileiro, Um Legado da Imigração Italiana. Adoraria conversar com você...acha possível?
    Meu email é marciatrip4@gmail.com

    ResponderExcluir
  2. Bom dia, Loraine.
    Quem me falou sobre você foi o Floriano Molon, inclusive me passou um número de telefone que não consigo ligar 54 4323-0753.
    Sou Márcia Monteiro...jornalista roteirista e estou fazendo pesquisa pra meu filme documentário O Vinho Brasileiro, Um Legado da Imigração Italiana. Adoraria conversar com você...acha possível?
    Meu email é marciatrip4@gmail.com

    ResponderExcluir